Rogério Casanova vai rapar as sobrancelhas e a culpa é daquele passe magnífico de William - que na verdade foi um penálti
William tem tudo a ver com Heródoto, Bas Dost é Bartleby e a playlist de Schelotto no Spotify: estas e outras referências históricas, literárias e musicais na apreciação de Rogério Casanova ao Nacional-Sporting (0-0)
29.10.2016 às 0h52

Gregório Cunha/Lusa
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Rui Patrício
Existem peixes nas fossas abissais do Oceano Índico que vivem e morrem sem nunca verem, ou sequer pressentirem, a luz do sol. Navegam essas profundezas de altas pressões flutuando como pequenos balões, auto-contidos e bioluminescentes, gerando internamente a sua própria luminosidade. Passa-se imenso tempo sem se cruzarem com presas, predadores, ou sequer peixinhos amigos. E quando se aventuram e sobem até à superfície, as coisas nem sempre correm bem. Ou, por outras palavras, é preciso é calma.
Schelotto
Playlist de Schelotto no Spotify: “Born to Run”, Bruce Springsteen; “Run, Run, Run”, Velvet Underground; “Always on the Run”, Lenny Kravitz; “Run Like Hell”, Pink Floyd; “Run for your Life”, Beatles; “Poor Little Fool”, Ricky Nelson; “I Can’t Explain”, The Who; “Whatever”, Oasis.
Coates
Menos anatomicamente interventivo do que habitual, teve tempo para ser amarelado ao minuto 25 depois de explicar a Salvador Agra, por via muscular, que a sua conduta estava a ser a todos os níveis inaceitável. O penálti que sofreu no início da partida, um dos penáltis mais indiscutíveis da história da modalidade, impediu-o de marcar um golo que para todos os efeitos já estava lá dentro, alterando assim decisivamente o rumo da partida, do campeonato, e até, potencialmente, do percurso da humanidade nesta esfera que todos habitamos.
Rúben Semedo
Aguardou com paciência de Job que as coisas se resolvessem lá para a frente sem a sua intervenção directa, mas ao minuto 85 decidiu progredir com a bola controlada pelo meio-campo contrário, criando através desse revolucionário mecanismo a jogada mais perigosa da equipa em toda a segunda parte. Ainda ameaçou no pontapé de canto que resultou dessa jogada, mas o cabeceamento saiu à figura. Apesar de tudo, foi hoje o único representante em campo do hetero-patriarcado falocêntrico.
Zeegelaar
Uma coisa é certa: a sua confiança tem crescido de jogo para jogo, um fenómeno para o qual não há qualquer explicação fora do domínio da parapsicologia. Ao minuto 19 tentou fintar e cruzar perto da linha final, uma sequência que exigiu da sua parte energia suficiente para alimentar hidraulicamente uma cidade inteira. Ao minuto 31, correndo na direcção de um passe intercetado de Ruiz, deixou-se levar pela inércia do movimento e escorregou, sendo na prática fintado por uma jogada que estava a decorrer a quinze metros de distância. Ao minuto 58 procurou desequilibrar um jogador do Nacional bailando alguns segundos à sua frente. O jogador do Nacional, exibindo a compostura que caracteriza os verdadeiros profissionais, não se desmanchou a rir.
William Carvalho
Chegou com dois segundos de atraso a todos os lances que disputou. Na grande penalidade conseguiu executar o passe com a sua habitual precisão: a bola saiu-lhe redonda e direitinha para a outra pessoa.
Heródoto contava que, no antigo Egipto, sempre que um gato morria, todos os habitantes da casa rapavam os pelos das sobrancelhas em sinal de luto. Mais um jogo assim e começo a vasculhar as páginas amarelas à procura de centros de estética.
Gelson Martins
Logo a abrir, ainda antes do penálti, recuperou uma bola perdida no meio-campo, avançou uns metros, e depois... e depois, incompreensivelmente, decidiu desmarcar Markovic. Foi interessante vê-lo perder um sprint (com Agra), sendo que perder um sprint era uma experiência que provavelmente não tinha desde o jardim infantil. Ainda fez o mais perigoso dos (poucos) remates enquadrados da equipa, mas pareceu, mais uma vez, e cada vez mais, um homem sozinho.
Bruno César
Nem sempre se conseguiu desembaraçar da pressão do Nacional na primeira parte e, apesar de ter finalmente jogado de início numa posição central mais recuada, foi frequente vê-lo receber a bola de costas e sem grandes opções. Melhorou depois do intervalo – talvez o único a fazê-lo – e ao minuto 73 penetrou na grande área, sofrendo um dos penáltis mais escandalosos da história da modalidade, num lance que poderia ter alterado decisivamente o rumo da partida, do campeonato, e até, potencialmente, do percurso da humanidade nesta esfera que todos habitamos.
Bryan Ruiz
Andou vagamente pela direita nos primeiros minutos, andou vagamente pelo meio, foi derivando vagamente para a esquerda, e à exceção de um lance a meio da primeira parte em que conseguiu fazer um túnel ao adversário e cruzar para Dost, obteve os mesmos resultados práticos em todas essas áreas, numa bela homenagem táctico-mimética à carreira de Freitas do Amaral.
Markovic
Aberturas com demasiada força, combinações que mais ninguém percebe, tentativas de triangulação que fariam vomitar de ansiedade o próprio Euclides. Pode dizer-se que hoje, pelo menos, correu mais vezes sem bola do que com bola. A intensidade com que andou lá na frente a fazer carrinhos de um lado para o outro lembraram alguém na entrevista de emprego mais importante da sua vida, a tentar freneticamente convencer os entrevistadores de que os seus conhecimentos de MS-DOS na óptica do utilizador poderiam vir a ser uma tremenda mais-valia para a empresa.
Bas Dost
Não será fácil caracterizar a natureza do problema, mas podemos começar por aqui: Bas Dost chega sempre primeiro a todas as bolas que lhe aparecem à frente dentro da área (hoje foram apenas duas: numa ocasião rematou por cima, na outra rematou contra a perna de um defesa); e Bas Dost nunca chega primeiro a bolas que o convoquem para fora da área. Mas a equipa insiste em solicitá-lo de maneiras com as quais ele não concorda. Pelo que temos um avançado de oito milhões de euros que começa a comportar-se como o amanuense Bartleby no conto de Melville, preferindo não fazer nada daquilo que lhe pedem.
Alan Ruiz
Entrou, perdeu bolas, errou passes, fez várias faltas, tudo à mesma velocidade, e com uma consistência admirável.
Joel Campbell
“Não conseguiu dominar a bola da melhor maneira”, disse a dada altura o comentador da Sport TV, uma frase que pode perfeitamente ser traduzida para Latim vernacular e bordada na sua camisola.
Elias
Supõe-se que entrou para dar mais presença ofensiva à equipa, função para a qual está eminentemente capacitado: nesta altura há poucas presenças em campo mais ofensivas do que a sua.
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