“Porquê isto? Há 10 dias pensava em futebol. Hoje penso na arriscada viagem ao supermercado, mais complexa do que o jogo contra o City”
Luís Castro está em quarentena na Ucrânia, onde lidera o Shakhtar Donetsk, equipa que ocupava grande parte do dia-a-dia do treinador português. Agora, as preocupações são outras: "Penso na máscara, no desinfetante, em lavar as mãos, em não cumprimentar o meu amigo, e na arriscada viagem ao supermercado, mais complexa do que o jogo contra o City ou a Atalanta. Como foi isto possível?"
27.03.2020 às 8h00

Rui Duarte Silva
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Acordei para mais um dia. Sei que vai ser difícil dar-lhe sentido. Sempre me alimentei do treino ou do jogo desde os meus onze anos. Equilibrei-me na família sempre que o dia-a-dia assim o exigia. Mas o dia de hoje, em tempo de limitações evidentes, jamais será um dia feliz.
Sem a bola, sem o beijo e a 4.000 km de Portugal.
Os motivos para a falta de felicidade advêm fundamentalmente de ver que muitos sofrem com um vírus que tomou o controlo do mundo, devastando vidas, separando famílias e desmoronando a economia mundial.
Ao longo de anos e anos, fomos convencidos pela ideia de um mundo global, abrimos os braços e demos um abraço gigantesco, mas a ganância económica do mundo global esqueceu-se das regras para esse mundo. Correu mal.
Mudou a face da minha vida, da tua, da nossa, da deles, do mundo.
E agora?
Agora resta-nos aguardar com muita ansiedade o que vai ser de muitos de nós. Quantos vão cair e não se vão levantar mais? Quantos seguirão em frente? Quantos terão a dignidade de dar a mão aos que caíram?
Voltando ao início, sim, sei que será um dia sem sentido. Por muito que me discipline, falta-me o treino, o jogo, o vídeo do adversário, o relatório, o vídeo da nossa equipa, o planeamento, a ansiedade pré jogo, o stresse competitivo, a dor, a angústia, a alegria da vitória, a tristeza solitária na hora da derrota: o alimento para ser feliz.
Não sei quando tudo vai voltar à normalidade. Há dez dias pensava na segunda mão da Liga Europa e no jogo contra o Dinamo de Kiev. Hoje penso na máscara, no desinfetante, em lavar as mãos, em não cumprimentar o meu amigo, e na arriscada viagem ao supermercado, mais complexa do que o jogo contra o City ou a Atalanta. Como foi isto possível?
O que nos aconteceu? Porquê?

PAUL ELLIS
Sei que neste momento, o importante é resolver a situação e não procurar os porquês. Mas tem de chegar o tempo dos porquês, até porque pode estar a gerar-se a próxima epidemia, de forma silenciosa, e nós temos de estar mais preparados para responder.
Estou exausto, exausto de não fazer nada. Dizem-me, “vê filmes, lê, escreve, pinta…”, não quero saber disso agora. Essas ocupações são boas para me equilibrarem quando trabalho, agora nada disso me faz feliz. Quero treinar, quero jogar e quero muito, muito, muito, muito, muito que todos os que estão a sofrer fiquem bem e voltem para o seio das suas famílias.

Vítor Severino, à direita, à conversa com Luís Castro, ao centro, e João Brandão, à esquerda - três dos portugueses que trabalham no Shakhtar Donetsk
GENYA SAVILOV
Que capacidade impressionante de trabalho têm tido todos os PROFISSIONAIS de SAÚDE! Que exemplo são para o mundo pelo espirito de missão, determinação, amor ao próximo, dignidade e honradez. Pessoas notáveis que arriscam a sua vida para salvar a dos outros.
Espero que os governos dos diferentes países de todo o mundo jamais esqueçam que o futuro da humanidade está nas mãos destas pessoas que, perante a realidade desta pandemia, a falta de uma vacina ou de uma cura, trabalham incansavelmente para salvar vidas.
Não consigo encontrar palavras para descrever a minha admiração e a minha enorme gratidão.
Lá no cantinho onde nasci, Trás-os-Montes, sempre se disse,
OBRIGADO
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