Não sei se já espreitaram o Instagram do Social Media One
Ninguém diria que Mourinho se transformaria com o tempo num guru das redes e num storyteller de ocasião, mas há séculos que o darwinismo associa a adaptação à sobrevivência das espécies: Special One, Happy One, Social Media One. E isto talvez seja uma das chaves para a sua reabilitação: o treinador, como ele próprio diz na sua nova persona, abraçou finalmente a mudança dos tempos. Hoje há Tottenham - Chelsea (16h30, SportTV)
29.11.2020 às 10h50

Clive Rose
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Bom, não sei se espreitaram ultimamente a conta de José Mourinho no Instagram ou sequer se sabiam que ele tinha uma. Eu sabia, mas como não tenho pedi a quem a tem para me mostrar o que ele lá põe. Então que vi e que por acaso fiquei surpreendido, não pelo número de seguidores em si, mas pelo que Mourinho faz de si: pouco e bem.
O humor auto-depreciativo exige antes de mais sentido de humor, e depois o bom senso e o bom gosto necessários para não ir longe de mais na martirização; o que é de mais enjoa, se me faço entender, e ver alguém repetir compulsivamente o truque tarte-na-própria-cara transforma a experiência schadenfreude previsível e aborrecida.
E nós não queremos isso, não é bom para o negócio.
Por outro lado, quando bem feito, o corajoso ato de gozarmos connosco em frente a um milhão e tal de pessoas engaja esse tal milhão e tal de pessoas: Mourinho, que se deixa fotografar a comer pipocas de pacote a ver um filme com Tom Hardy, a picar qualquer coisa de um tupperware transparente ou a apontar com ar resignado para os futebolistas agarrados ao telemóvel no final do jogo, como quem diz “e pronto, é isto que tenho de aturar”, arranca sorrisos e gera empatia.
Porque se refere sempre “ao assistente” que o fotografa e porque é um estratega meticuloso, desconfio que tudo isto seja pensado e que o performer Mourinho esteja a executar este plano como parte de um desígnio maior: a sua reabilitação total, pois os títulos conquistados antes pareciam já não chegar para manter intocada a imagem do vencedor.
Era preciso, talvez, um pequeno twist e Mourinho fez-se influencer.
Mas, e quê? Importa saber se é fingido ou natural, quando o Tottenham vai à frente da Premier League e derrotou há pouco tempo o Manchester City de Pep Guardiola, precisamente, o City de Guardiola?
Não estou assim tão descrente: tem alguma importância.
Os resultados deste Tottenham – de defesa robusta, três médios intratáveis (Hojberg, Sissoko e Ndombélé), um avançado centro que marca golos e marca o tempo (Kane) e um extremo sónico (Son) – levam a uma questão fundamental: terá Mourinho recuperado o seu mojo? E a uma pergunta acessória: e, se sim, como?
Foram-nos oferecidas várias hipóteses, desde a conversa com Kane e de como a equipa se move harmoniosamente em função deste, da guerra psicológica com Delle Alli que foi perdida por este, e de como Mourinho pode ter-se reencontrado com jogadores que pode manipular mentalmente em seu benefício.
Tal como no FC Porto, no Chelsea e no Inter – e, em certa medida, também no Real Madrid, que sofria, impotente e frustrado, perante o domínio impiedoso do Barcelona – o português funciona melhor com futebolistas de CV’s modestos.
Injeta-lhes a confiança e a agressividade suficientes e eles corresponderão na medida exata, parece dizer Mourinho; os seus mind games já fazem parte da tradição oral.
Bem, mas o que eu também vejo é um Mourinho enfim diferente. Ou melhor: adequado.
Recuemos a 2017 e a uma entrevista à France Football na qual Mourinho refletia sobre fraturas geracionais. “Hoje, chamo-lhes ‘rapazes’ [aos futebolistas] e não ‘homens’, porque penso que são pirralhos e que tudo o que os rodeia não os ajuda na vida, nem ajuda o trabalho que tenho de fazer. Há dez anos, nenhum jogador tinha o telemóvel no balneário”.
O maldito telemóvel no balneário que hoje Mourinho aceita com um encolher de ombros na sua nova persona nas redes sociais.
Durante muito tempo, o português terá tido dificuldade em reconhecer que as coisas tinham entretanto mudado e que não era possível agir de forma igual em tempos diferentes. Um dos seus protegidos e prediletos sempre foi Frank Lampard [hoje, às 16h30, encontra-o no dérbi londrino com o Chelsea], médio responsável, profissional e inteligente. E foi em cima deste good lad, com um Q.I. acima da média, que Mourinho projetou basicamente o que queria dos outros que foi encontrando. “Tive de compreender a diferença entre trabalhar com um rapaz como Frank Lampard que, aos 23 anos, já era um homem, preocupado com o futebol, o trabalho e em ser profissional e os rapazes de agora que, aos 23 anos, são crianças”, disse ele na mesma conversa com a France Football.
Mas o mundo pulou bastante numa década: como nós, os jogadores são atraídos pelos likes e pelas interações, e os seus ecrãs brilham como árvores de natal no escuro de uma sessão de vídeo; como nós, os jogadores tornaram-se impacientes e o déficit de atenção destes aumentou dramaticamente; e, ao contrário da maioria de nós, os melhores jogadores têm agora entourages, com promessas de contratos profissionais e publicitários chorudos que lhes sugerem uma saída fácil quando o mister não os põe a jogar e estão com azia.
Mourinho abdicou de resistir e foi com a maré, como toda a gente; de qualquer forma, é impossível parar o mar com as mãos ou com a força da mente, pelo que é mais prático deixar-se ir. Aliás, um dos sete mandamentos para o bom influencer –elencados pelo próprio num vídeo produzido para as redes pela Tottenham TV – é exatamente este: abraça o momento, tens de aceitar e aproveitar.
Para os curiosos, os outros seis são: leve os seus seguidores na viagem; interaja com a sua audiência; sê verdadeiro nos bons e maus momentos; apresenta o teu ponto de vista com ênfase; e sê autêntico.
Banalidades? Talvez.
Ninguém diria que Mourinho se transformaria, com o tempo, num guru e num storyteller de ocasião, mas há séculos que o darwinismo associa a adaptação à sobrevivência das espécies: Special One, Happy One, Social Media One.
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