Hoje ele deixou para trás os três ferros. Hoje o futebol ficou sem uma lenda
Um ano e três meses depois de o coração o atacar num treino e quase 23 anos depois de ser levado, de urgência, de uma sala de aula para se estrear em convocatórias pelo Real Madrid, Iker Casillas anunciou a retirada. O guarda-redes espanhol, de 39 anos, vencedor de tudo e mais alguma coisa, disse adeus através de uma carta de despedida que deixaria sempre o futebol mais empobrecido
04.08.2020 às 14h04

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Ali esteve ele nos festejos do título, mais magro, velho, rugoso, tímido, quase envergonhado, de boné e casaco e adornos a rigor, a imiscuir-se nos festejos que eram muito dele por direito e por vontade dos últimos companheiros que teve e com quem não partilhou esta época, mas sim a anterior, até sofrer um ataque cardíaco num treino que lhe suspendeu a vida e a carreira era o menos importante.
Em abril de 2019 viu-se a lenda de luvas postas pela última vez. Um brasileiro de seu nome Ronan David rematou a derradeira bola que lhe escapuliu, quase 23 anos após um funcionário do Real Madrid, de nome desconhecido, bater à porta da sala onde Iker Casillas atentava a uma aula de desenho, urgindo-o a ir com ele, imediatamente, porque o gigantesco clube onde se fazia a uma vida nas balizas necessitava de um rapaz de 16 anos, como precaução para o banco de suplentes de um jogo da Liga dos Campeões, na Noruega.
O ano era 1997 e daí partiu, usando os reflexos lendários que sempre disse com ele terem nascido, e a força nas pernas igualmente inata. Casillas foi-se fazendo guarda-redes de defesas impossíveis e fez-se especialista em salvar uma equipa quando tudo o resto falhava: quando era só ele, os seus braços, as suas pernas e a sua grandeza à frente de quem se isolava e o tinha como derradeiro obstáculo para chegar à baliza.
Foram 1.074 aparições em campo e por certo várias centenas de golos sofridos, porque essa é a vida inevitável de um guarda-redes a quem se contam as bolas que passam por ele, mas ficam por contar as todas as outras (e superiores) centenas de bolas que evitou pararem na baliza. A grandeza de Iker Casillas ficará aí, em tudo o que não passou por ele enquanto passavam os anos capitaneando o Real Madrid e a seleção espanhola, onde deixou a maioria dos 23 títulos, e o FC Porto, que liderou sem a braçadeira pelo exemplo e estatuto com que lá chegou.
Ao clube onde a vida lhe pregou a provável partida mais assustadora agradeceu a "forma" como foi recebido, como lhe "ensinaram a ver as coisas de outro ângulo" e a "oportunidade de conhecer uma cidade" pela qual se apaixonou. Palavras dele, que deixou escritas numa longa carta de agradecimento a muita gente e de até já para o futebol, onde há meses era um candidato à presidência da Federação Espanhola de Futebol e, nos próximos tempos, poderá vir a ser outra coisa que não a presença de luvas entre três pedaços de ferro.
Os três postes aos quais dedica as últimas linhas do seu agradecimento, porque "o viram a crescer como guarda-redes", porque "a todo o momento [o] colocaram no sítio" e o "obrigaram a ter os pés assentes na terra", porque a eles "tanto deve" e deles sentirá "muita falta", depois de muito escrever sobre o quão "afortunado" se sente por ter desfrutado e vivido tanta coisa. Afortunados serão todos aqueles que o terão visto ser e jogar como é.
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