Morreu Diego Armando Maradona, mas ele viverá
El Pibe de Oro, o menino de ouro, morreu esta quarta-feira. Diego Armando Maradona foi dos melhores jogadores de futebol de sempre, possivelmente o melhor, com certeza o maior para muita gente. Ganhou o Mundial de 1986 e agigantou o Nápoles, de Itália, enquanto lá jogou. Tinha 60 anos e há pouco mais de duas semanas fora operado a um hematoma subdural na Argentina. Era atualmente treinador do Gimnasia de la Plata, clube dos arredores de Buenos Aires, e resumir-lhe a vida é apenas uma tentativa condenada ao falhanço
25.11.2020 às 16h22
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Há as imagens de Diego Armando Maradona com o diabo furibundo no corpo, com mais cabelo do que tamanho, a correr desenfreadamente contra todos os jogadores do Athletic Bilbao que lhe aparecessem à frente, ele talvez o mais pequenote no relvado e ao mesmo tempo o maior distribuidor de pancada do lado do Barcelona na batalha campal que se instaurou em campo, naquele dia.
Há o vídeo de uma das versões mais despreocupadas de Diego Armando Maradona com a parte de cima de um fato de treino mal amanhado e as icónicas botas da Puma à balda, os atacadores desapertados por todo o lado, ele no meio de um aquecimento coletivo do Nápoles, antes do jogo, a ser o mais individualista que poderia ser ao som do "Life is Life" a ecoar no estádio. E o vídeo é o argentino a recriar-se, ponto, e não a divertir-se com uma bola, porque a bola fazia parte dele e ei-lo a fazer coisas que ninguém faz, quando ninguém ousaria fazê-las.
Ele a ser Maradona, simplesmente.
Há também o relato de Diego Armando Maradona como um barrilete cósmico porque assim o definiu o jornalista Victor Hugo Morales diante da grandeza em curso, de um mito a fazer-se e a acontecer relvado acima no México, quando o argentino com o 10 nas costas enganou, driblou, susteve tentativas de falta e ultrapassou e fugiu de qualquer existência inglesa nos quartos-de-final do Mundial de 1986 para marcar o golo do século, do anterior mas que também é deste, é de todos os séculos até aparecer alguém que se lembre de inventar alguma coisa remotamente semelhante a esta.
Ah, e depois de, no mesmo jogo, enganar o mundo ao erguer a mão e tornando-se o deus celebrado pelo engenho errante.
Morreu esta quarta-feira, aos 60 anos, Diego Armando Maradona, vítima de uma paragem cardio-respiratória, avançaram os diários argentinos "Clarín", o "Olé" e o "La Nación", primeiros portadores de uma notícia que há muito, muito tempo antes deixou de ser apenas deles e da Argentina, porque Maradona tornou-se do mundo, de todas as pessoas que um pouco por todo o lado o idolatrara e cultuaram por ter sido quem foi - e como o foi.

Onze
A sexagenária existência de Diego Armando Maradona começou em Lanús. Nasceu um de sete filhos, o primeiro dos rapazes, saltemos a parte redundante do jeito para a bola que podemos não voltar a ver nem que passem outras seis décadas e saltemos para o Argentinos Juniores, clube no qual se estreou, em 1976, a dez dias de cumprir 16 anos. O impacto gigantesco foi e em 1978 quase houve uma comoção no país por César Luis Menotti não o convocar para o Mundial que a Argentina recebeu e conquistou, em plena ditadura militar.
Diego Armando Maradona iria em 1981 para o Boca Juniores, vestiu-se com o azul da lista amarela de porto de Buenos Aires e perdurou um ano até o Barcelona o fazer atravessar o charco. Pesquisem por fotos do argentino e verão muitas em que no enquadramento há corpos adornados com outras cores a rasteirá-lo, agarrá-lo, pontapeá-lo ou a pelo menos tentarem-no, porque muitas vezes essas batotas agressivas eram a única forma possível de o travar. O período em Espanha começou a torná-lo visível.
O génio ziguezagueante do canhoto cabeludo parecia troçar dos seus semelhantes em profissão, mas nunca iguais em tudo o resto. Tão natural tudo lhe parecia sair do corpo que era impossível não captar essa aparente troça. Tenha ou não sido pela inconsciente noção de estar a ir contra alguém imparável, o guarda-redes Andoni Goykoetxea derrubou-o pelas costas em 1983, num Athletic Bilbao-Barcelona, fraturando-lhe o osso maléolo de um tornozelo e cortando o tempo de vida de Diego Armando Maradona no clube catalão. Transferir-se para lá foi "o maior erro da [sua] vida", assumiria um dia.
Um ano antes, tinha o argentino 21, deixara uma frouxa imagem no seu primeiro Campeonato do Mundo com a Argentina. Essa impressão, uma hepatite que teve na primeira época e a fratura sofrida na segunda, mais a tal pancadaria que o acendeu no Barcelona, delapidaram a imagem de um miúdo rebelde em quem o Nápoles se interessou.

Etsuo Hara
Momentos há que mudam a história para sempre e a de Diego Armando Maradona alterou-se assim que pôs pé na cidade italiana onde o coração de cada pessoa que lá vive sai-lhe pela boca fora. "Quero ser o ídolo dos menino pobres de Nápoles porque eles são como eu era em Villa Fiorito", foram as palavras dele citadas por Fernando Signorini, o preparador físico que mais o tratou, à revista "Líbero", lembrando como no lugar do sul de Itália o jogador achou um sítio para ser - e querer ser - ídolo de um povo.
Nápoles era um clube mediano no desportivo embora gigante no apoio das gentes, faltava títulos para colar as duas comadres e a cola surgiu com Diego Armando Maradona e por causa dele: a chegada do argentino aumentou imensuravelmente a qualidade na bola, mas também motivou quem lá mandava a investir para atenuar a diferença que sempre existiria entre o argentino e quem o tentasse acompanhar.
Chegariam os brasileiros Careca e Alemão, personagens secundários como quaisquer outros, até o italiano Giuseppe Bruscolotti, que protegido estava pelo estatuto de ser capitão quando capitanear significava respeito e não um prémio, cederia ao evidente. "A decisão de deixar a braçadeira de capitão ao Diego foi espontânea. Sabia que era o líder da equipa e o gesto serviu para lhe outorgar ainda mais autoridade", contaria, sobre o que optou por fazer na temporada que houve entre as duas Séries A conquistadas pelo Nápoles.
Em 1987 e 1990, os arranha-céus de alegrias adiadas ruíram em Nápoles, o povo endoidecido pelo erguer do clube sem teto à vista com Diego Armando Maradona, com ele tudo parecia ser possível e também o foi uma Taça UEFA, em 1989, uma Taça, em 1987, e uma Super Taça, em 1990. Dentro e fora de uma Itália onde, por estas alturas, o francês Michel Platini erguia a Juventus, os holandeses Van Basten, Gullit e Rijkaard sustinham o AC Milan, havia Lottar Matthäus e Jürgen Klinsmann no Inter de Milão, e também Zico na Udinese ou Sócrates na Fiorentina.

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Itália era a nação para os talentosos estarem e Diego Armando Maradona agigantou um clube no meio de todos, venham eles. E quase o engrandeceu ainda mais a seleção da Argentina quando o futebol centrou ainda mais o futebol no país em forma de bota ao centralizar lá o Mundial de 1990.
Os argentinos estavam longe de casa, eram os campeões a defender a honra em continente alheio, mas, nas meias-finais, quando defrontaram os italianos, os corações do pedaço peculiar de Itália onde se encontravam dividiram-se. O jogo foi em Nápoles e nas veias dos napolitanos corria sangue maradoniano antes de se lembrarem do órgão italiano que o bombeava. Os dias precedentes foram quentes e o estádio San Paolo fervilhou no dia da partida vencida pela Argentina, que reeditaria a final com a Alemanha, perdendo-a com a última versão aproximada do verdadeiro Diego Armando Maradona.
Ele apenas descalçou as botas da Puma que foram ícones nos seus pés em 1997, escondido no balneário do estádio do River Plate, o maior rival do Boca Juniores ao qual regressara, sem retornar do balneário e terminando assim, discreto, talvez a única discrição que teve na carreira, sendo substituído por um simbólico Juan Román Riquelme - seria o 10-tipo da Argentina e do clube de Buenos Aires na geração seguinte - para, uns dias depois, anunciar a retirada pelos jornais, devido a doença do pai.
Mas ele terminaria mais ou menos sete anos antes, nesse 1990. Há uma certa quantidade do que o corpo humano aguenta, a unidade de medida é incerta e cada qual suporta o que pode até um limite e o de Diego Armando Maradona com a cocaína, o álcool, as festas e vida diletante durou anos. Chegou a dizer, algures, que começou no Barcelona, outras vezes estimou que foi com 24 anos, logo quando já estaria no Nápoles.

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É confuso e atabalhoado, maradoniano portanto. Traçar-lhe a origem é impossível. Certeiro é culpar as substâncias pela decadência do génio que vive diante do espelho imaginário, daqueles a que as crianças recorrem para retorquirem com a brincadeira ou piada de que são alvos. Diego Armando Maradona foi-se despedaçando enquanto se via a transbordar de feitos futebolísticos superiores a quem quer que o ousassem comparar.
O argentino drogou-se e jogou, bebeu e treinou, festejou e ia em estágio, abusou do que é trivial chamar prazer da vida quando, na verdade, é prazeroso às custas da vivência com que depois se fica e a de Diego Armando Maradona, mesmo que aos poucos e disfarçadamente, sentiu a erosão das suas escolhas.
A errância apanhá-lo-ia em março de 1991, com um teste no Nápoles-Bari em Itália que o baniu até junho do ano seguinte por detetar cocaína. O castigo não foi mais longo, justificou-se na época, porque não se provara que a substância o fazia ser melhor em campo. Com ironia, sarcasmo ou figura de estilo por inventar, como as palavras que não há em suficiência para lhe fazer justiça no bom e no mau, Diego Armando Maradona resumiria um dia o que fez: "Quando me drogava, fazia um favor aos adversários". Imaginem então se não o tivesse feito.
Um controlo anti-doping voltaria a arruiná-lo aos olhos de toda a gente em 1994, em pleno Campeonato do Mundo dos EUA onde deixou o grito-mestre colado a uma câmara de televisão, todo ele uma amostra esbugalhada, denegrida e louca do que fora, após marcar o último golo pela seleção e soltar a revolta contra o que fosse que estivesse aprisionado dentro dos 167 centímetros de corpo demasiado pequeno para aguentar tanta genialidade.

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O corpo que se foi deteriorando nos joelhos, na coluna, nos tornozelos e na barriga que Diego Armando Maradona jamais deixou de sobrecarregar com excessos e todos nós a apanhar, aqui e ali, as migalhas da sua exorbitância que nunca coube nos padrões futebolísticos, sociais ou culturais - ele foi selecionador da Argentina e mandou os críticos "chupar, e continuarem a chupar" ao qualificar-se para o Mundial de 2010; aceitou ir treinar para Sinaloa, no México, terra posta no mapa pela droga e onde foi dar palestras documentadas sem sentido aparente; e uma versão ébria e descontrolada sua foi à Rússia assistir a um jogo da Argentina, no Campeonato do Mundo de 2018.
Resumir outros laivos da sua pessoa é desnecessário. Diego Armando Maradona é, porventura, o humano mais reconhecido a alguma vez ter nascido na Argentino e, mesmo que discutível, a ter feito carreira do futebol, quando os onze de cada lado e a bola tinha só adeptos, jornais e televisões a rodeá-los e não as internéticas redes que socializam as coisas sem estarmos próximos delas.
E o seu nome, segundo nome e apelido estão em todos os parágrafos gordos deste resumo possível, salvo um, porque repetir Diego Armando Maradona nunca será demais pelo quão imensamente grande logrou ser, mesmo sendo tão decadentemente sabotador dele próprio. Maradona morreu aos 60 anos, mas a sua imagem e tudo o que foi viverá muitos mais anos, talvez todos os que restem na memória coletiva que guarda o que é o futebol.
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