Um(a) Estrela ascendente: o histórico da Amadora está de volta
Depois de ter descido de divisão, de ter sido extinto e de ter renascido com outro nome, aí está o novo Estrela, que quer voltar a ser o histórico da Amadora, que batia o pé aos grandes do futebol português e que conquistou uma Taça de Portugal em 1990. O ambiente do estádio José Gomes está renovado, depois da constituição da SAD liderada por André Geraldes, mas o novo Estrela quer voltar ao passado esta quinta-feira, quando receber o Farense (14h30, Canal 11), precisamente a equipa contra quem conquistou a única Taça do palmarés - troféu entretanto roubado das vitrines do clube
02.12.2020 às 8h00

O balneário do Estrela tem na parede dois homens que passaram pelo clube: Fernando Santos e Jorge Jesus
José Fernandes
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A porta abre-se. À entrada, para lá do embate com o aroma inconfundível dos balneários, mescla de suor, humidade e perfumes variados, a prova de que o estádio José Gomes está mesmo de volta à alta roda do futebol: pousada num dos bancos, paredes-meias com as gravuras da "grandeza" de Fernando Santos e da "glória" de Jorge Jesus, uma pochete Louis Vuitton, marca fetiche de tantos futebolistas por esse mundo fora, símbolo natural de afirmação capitalista para quem pontapeia bolas e é (bem) pago para isso.
"É linda, não é?", inquire retoricamente Rita Pedras, diretora de comunicação, referindo-se, claro está, à parede que mais se destaca no balneário da equipa da casa, que foi todo renovado em julho, agosto e setembro, junta e sucessivamente com as melhorias no ginásio, no departamento médico, nos escritórios, nas bancadas, na tribuna e até nos próprios corredores de acesso ao maior estádio da Amadora, agredidos pela inexorável passagem do tempo que já nos tinha feito esquecer o clube que nasceu em 1932 e foi extinto em 2011, imerso em dívidas e caído, da I Liga, em desgraça.
O Estrela.

O Clube de Futebol Estrela da Amadora foi fundado a 22 de janeiro de 1932
José Fernandes
Estrela cadente
Na verdade, aquele era o Clube de Futebol Estrela da Amadora, precursor do Clube Desportivo Estrela, o sucessor nascido no mesmo ano em que se apagou o brilho do original, e também ele entretanto substituído, agora pelo Club Football Estrela.
Ou seja, de um, fizeram-se três, e a história conta-se assim: em 2008/09, o antigo Estrela até terminou em 11º lugar a I Liga que o FC Porto conquistou, mas as inúmeras dívidas do clube, que ascendiam a 36 milhões de euros, acabariam por motivar uma descida na secretaria. O tombo foi grande: com a insolvência que se seguiu, na sequência do chumbo dos mais de 200 credores, entre os quais o Estado, ao plano de recuperação previsto, o clube extinguiu-se definitivamente, em 2011.
O relvado do José Gomes, entretanto detido pela comissão de credores e gestão de insolvência, foi substituído por um amontoado de ervas daninhas, as bancadas definhavam insípidas e as redondezas iam sendo vandalizadas. Farto de assistir ao desleixo de quem foi abandonado, um grupo de ex-sócios decidiu então recuperar, dentro do possível, o clube que apoiavam, criando o Clube Desportivo Estrela, essencialmente baseado nos escalões de formação, já que ainda haveria um sinuoso caminho a percorrer até que uma equipa sénior pudesse ascender novamente ao topo do futebol nacional.
É aí que surge o novo Club Football Estrela, amálgama do Clube Desportivo Estrela com o Club Sintra Football. A junção com o clube sintrense, aprovada em julho deste ano pelos sócios amadorenses, permitiu criar uma Sociedade Anónima Desportiva (SAD) e ascender diretamente ao Campeonato de Portugal, antecâmara das provas profissionais.
Ou seja, de três, fez-se novamente um: pintado de vermelho, branco, verde e amarelo, é o Estrela. "Esta revitalização vem trazer de novo ao futebol português e à Amadora aquilo que as pessoas sempre quiseram, que é ter um Estrela competitivo, organizado, estruturado e profissional", diz à Tribuna Expresso André Geraldes, presidente da SAD que tem como investidor maioritário Francisco Lopo, ficando como diretor desportivo da equipa Dinis Delgado, ex-presidente do Sintra Football, por onde também já tinha passado o treinador Rui Santos.

André Geraldes, que já esteve no Farense e no Sporting, é o presidente da SAD do Estrela
José Fernandes
O objetivo dos vários intervenientes é comum - "ter um Estrela a jogar na I Liga, a fazer aquilo que me lembro que o Estrela fazia quando eu era mais novo, a bater o pé aos grandes" - mas a infância de André Geraldes é singular e até determinante para a entrada do ex-administrador da SAD do Farense no clube. "A minha primeira memória é vir aqui ao estádio ver o Estrela com o meu pai, porque nós somos da Amadora", recorda, sentado na sala de reuniões do José Gomes. "Desde muito pequenino, cinco ou seis anos, sempre andei aqui perto, a viver o Estrela, como quase todos os habitantes da Amadora. A memória que tenho é a de um clube pujante, que contava muito para o futebol português e que tem uma massa associativa muito aguerrida e muito fiel", acrescenta.
Em dia de semana, o alvoroço em redor do José Gomes, área de elevada densidade habitacional - vivem na Amadora 175 mil pessoas -, é grande, mas é nos dias de jogo que mais se fazem notar os adeptos do Estrela, mesmo sem poderem entrar no estádio, devido à pandemia de covid-19. Nos muitos prédios à volta do campo, há ritual de gala: as janelas e as varandas embelezam-se com camisolas e cachecóis vermelhos, brancos, verdes e amarelos, possivelmente de alguns dos mesmos adeptos que fizeram questão de participar, voluntariamente, nas renovações da "casa" do Estrela, ajudando a pintar paredes, por exemplo, nos meses que antecederam a época iniciada em setembro.
"Reabilitámos muitas áreas do estádio que já estavam muito devolutas", alega André Geraldes. "Hoje em dia podemos dizer que se recebermos aqui o Real Madrid eles vão jogar sem problema nenhum", graceja, orgulhoso.
Contudo, o estádio José Gomes, assim como o campo de treinos e o edifício onde funciona o bingo, continua a ser detido pela comissão de credores e gestão de insolvência. Recentemente, a SAD fez uma proposta de dois milhões de euros para comprá-lo, mas o patamar mínimo pedido era de seis milhões de euros, pelo que haverá novo leilão de venda. "Acho que para a cidade da Amadora, para a população da Amadora, para o desporto da Amadora, para o maior símbolo da Amadora, não faz sentido que não exista um entendimento entre os compradores, neste caso a nossa SAD, e os vendedores, que são os credores. Só faz sentido o Estrela continuar aqui e tenho a certeza que a boa vontade e a sensibilidade das pessoas vai fazer com que percebam que esta é a melhor e eu diria a única solução possível", defende Geraldes.

Rui Santos, que já foi adjunto de Fernando Santos, é o mister do novo Estrela
José Fernandes
Um clássico de outros tempos
É precisamente no estádio José Gomes, assim batizado em honra do ex-presidente que engrandeceu o clube nos anos 70 e 80 e que também tem a sua figura pintada no túnel de acesso ao relvado, que o Estrela vai receber o Farense, quinta-feira, para a Taça de Portugal, num jogo que é um clássico dos anos 90 no futebol português.
A última das 41 vezes que amadorenses e farenses se defrontaram, ambos estavam na II Liga, com o treinador do Estrela a ser hoje bem mais reconhecido do que era naquela altura: Jorge Jesus. "É uma pessoa que também está muito contente com o reaparecimento do Estrela. Sempre se assumiu um amadorense e um estrelista. Está com o nosso projeto, disse-me em privado que tem assistido sempre que possível aos jogos", revela André Geraldes, que conviveu com Jesus no Sporting entre 2015/16 e 2017/18.
"Entramos no balneário e aquela parede mete logo respeito, não é? Geralmente falo com os jogadores ali, com aquela parede por trás. Então tenho o Fernando Santos à minha direita e o Jorge Jesus à esquerda", diz à Tribuna Expresso, entre risos, Rui Santos, o atual treinador do Estrela. "E realmente Fernando Santos, Jorge Jesus, João Alves, professor Jesualdo Ferreira e tantos outros... Passaram pelo Estrela grandes treinadores e isso é um motivo de orgulho e simultaneamente de grande responsabilidade", acrescenta o técnico, que curiosamente quase esteve a treinar na Amadora em 1994/95, com o homem que é agora selecionador nacional.
"Trabalhei com o Fernando Santos no Estoril e ele entretanto foi para o Estrela. Na altura não o acompanhei por razões de ordem pessoal e familiar. Mas era uma pessoa de quem gostava e gosto muito, portanto nessa altura obviamente acompanhei o Estrela de perto", confessa o técnico de 56 anos, que também garante lembrar-se "claramente" daquele que foi o maior jogo entre Estrela e Farense: a final da Taça de Portugal de 1990, conquistada na finalíssima pelo clube da Amadora.
Foi a maior conquista do Estrela, mas, hoje, ninguém sabe onde anda o troféu, perdido algures nos anos em que o clube bateu no fundo, desnorte de que também padeceu, precisamente, o Farense, onde Geraldes passou as últimas duas épocas, antes de sair "porque algumas ideias de alguns elementos internos eram diferentes", explica, "nomeadamente pela ambição que se queria para o Farense", agora na I Liga.
A coincidência no sorteio faz Rui Santos brincar: "O nosso presidente veio do Farense e este jogo para ele é o jogo da época. Acho que se ganhar ao Farense, posso dormir descansado até ao final da época".
















O bom humor do treinador do Estrela tem razão de ser: primeiro, porque o clube segue com uma carreira quase perfeita na liderança da série G do Campeonato de Portugal - em seis jogos, cinco vitórias e um empate -; depois, porque Rui Santos já sabe o que é eliminar um clube da I Liga da Taça: derrotou, ainda no Sintra Football, o Vitória de Guimarães.
"No dia do jogo, enquanto as equipas aqueciam, troquei umas palavras com o mister Ivo Vieira e disse-lhe: 'Ó mister, você não brinca em serviço, nem o Douglas tirou da baliza'. E ele disse-me que, dois dias antes, como tinha visto o Alverca a eliminar o Sporting... Começou a pensar que ainda lhe ia calhar uma daquelas", recorda, salientando a lição desse dia que é necessário replicar: "Tenho a convicção de que as equipas não podem ter medo de jogar contra as outras. Esse é o primeiro princípio a cumprir".
Yuran Fernandes concorda. "Temos muita confiança para a Taça, muita confiança", garante o jogador mais utilizado por Rui Santos, um dos capitães da equipa. "Acredito que o Farense vem aqui já avisado, não vem com os menos utilizados, depois de ter visto o que aconteceu nos últimos dias com outras equipas da I Liga. Mas acreditamos que vamos passar à próxima fase", diz.

Yuran Fernandes tem 26 anos e é um dos capitães do Estrela, clube que já conhecia desde os tempos em que começou a jogar, em Cabo Verde
José Fernandes
Aos 26 anos, Yuran é um dos mais veteranos do clube, dada a juventude do plantel, e a maturidade vai além do relvado. "Estou a fazer um curso profissional de gestão de hotelaria, só me falta apresentar o projeto. Treino de manhã, chego a casa à tarde e tenho tempo para fazer, saio daqui por volta das 14h e tenho a tarde toda para o projeto", explica. "Acho que vai ajudar-me para o futuro, porque sou de Cabo Verde e lá vivemos muito do turismo. Quando acabar a minha carreira quero ir viver para lá e investir no turismo", conta o central, que já em Cabo Verde conhecia o Estrela, então na I Liga.
"Via os jogos do Estrela em Cabo Verde e gostava sempre muito de ver os que eram aqui no estádio. Lembro-me bem que era difícil ganhar aqui", recorda, sentado numa das bancadas do José Gomes. "É um clube que já acompanhava há anos, é um clube histórico, sei o que era o Estrela. Agora infelizmente já não temos adeptos no estádio, mas é uma sensação diferente jogar aqui", reconhece o central proveniente do Pinhalnovense.
A diferença também está no rol de ex-jogadores do Estrela: Dimas, Abel Xavier, Miguel, Paulo Bento... "Já conhecia obviamente os jogadores que aparecem aqui nas paredes, um dos que gosto mais é o Jorge Andrade. Foi internacional, era da minha posição e começou aqui. Gostava muito dele, acho que sou parecido em campo com ele, pelo menos na atitude. A qualidade é que pode não ser a mesma", diz, a rir.
Em Portugal há quase uma década, Yuran quer deixar marca no Estrela e sabe como, já esta época: "O objetivo é subir, não há outro caminho. É chegar à II Liga. A III Liga... pode ser um troféu, mas não é o objetivo que temos, queremos chegar à II Liga, colocar o Estrela bem lá em cima", diz. "Com o passar dos anos o Estrela foi-se perdendo. Mas quando vim para Lisboa sempre ouvi dizer que as equipas de Lisboa eram Sporting, Benfica e Estrela. Desde que cheguei a Portugal sempre perguntei pelo Estrela, para ir sabendo como estava, e diziam-me que tinha acabado. Mas afinal não acabou."
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Yuran Fernandes tem 26 anos mas é, ainda assim, um dos mais veteranos do balneário do Estrela da Amadora, onde é um dos capitães que aconselha os mais novos e que conhece a história do clube, que já seguia quando crescia em Cabo Verde, conta à Tribuna Expresso