Flamengo: Jesus, o novo homem mau, colecionador de desafetos e botinadas
Treinador pode ser o primeiro estrangeiro a ser campeão no Brasil em 60 anos e está na final da Libertadores, contra o River Plate. Daí, cada botinada que recebe. A Tribuna Expresso convidou o jornalista brasileiro Plínio Fraga para escrever sobre Jorge Jesus e o Flamengo com o tom, o sotaque e o ritmo certos do Brasilerão
21.11.2019 às 8h58

Bruna Prado
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Faz 60 anos que um treinador estrangeiro ganhou um título nacional do futebol brasileiro. Por sinal, o título obtido pelo argentino Carlos Volante em 1959 - quando o Vitória da Bahia venceu o Santos de Pelé - é até hoje o único obtido por um treinador estrangeiro no Brasil.
Este é o tamanho do paradigma que o treinador Jorge Jesus deve quebrar ao se tornar campeão brasileiro de 2019 nos próximos dias, dirigindo o Flamengo.
A 11 pontos do segundo colocado, o clube carioca pode ser campeão neste final de semana, sem nem sequer entrar em campo. Basta que o Palmeiras não vença a partida de domingo contra o Grêmio.
Jesus tornar-se-á então um campeão épico para a história do esporte nacional. É difícil falar de uma saga no futebol brasileiro sem recorrer ao seu principal intérprete: o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues (1912-1980). Ele preferia os jogadores aos técnicos: “Que entende de alma um técnico de futebol? Não é um psicólogo, não é um psicanalista, não é nem mesmo um padre”, zombava.
Se houvesse, entretanto, testemunhado a chegada do português ao Brasil, talvez Rodrigues batizasse-o de Beau Geste Jesus. Tema de um livro inglês dos anos 20 (obra de P.C Wren) e de um filme americano dos anos 60 (dirigido por Douglas Heyes), a história dos irmãos Digby e Beau Geste relata como um expatriado com culpas do passado pode se tornar um herói em terras distantes. Os irmãos Geste, depois de assumirem o roubo da jóia de um lorde inglês, fogem e se alistam na lendária Legião Estrangeira.
Em busca de um novo sentido para a vida, os irmãos se redimem numa sangrenta batalha no deserto. Quando Geste teve sua tropa abatida, conseguiu reverter a derrota iminente em uma vitória espetacular.
Nelson Rodrigues usou o paralelismo do livro inglês em crônica do jogo amistoso entre as seleções de Brasil e Iugoslávia disputado em 19 de dezembro de 1968 no Estádio Mineirão, em Belo Horizonte.
Os jogadores do Atlético Mineiro foram convidados a representar a seleção brasileira, sob o comando de um lendário treinador, Yustrich. A Iugoslávia era uma das forças do futebol mundial. Em 15 minutos de jogo, marcara 2 a 0 e dava a impressão de que imporia uma goleada aos brasileiros. Eis que os brasileiros reagiram e viraram o placar. Um feito heróico, na narrativa superlativa de Rodrigues: “Foi um espetáculo empolgante de paixão. Mas eu pergunto: quem foi, acima de todos e de tudo, o autor do milagre? Eis o seu nome: Yustrich. Temos a mania de dizer que técnico não ganha jogo. Bem sei que ele não dá uma única e escassa botinada. E nem enfia os gols da vitória. Mas, sem aparecer, ele pode estar por trás de cada botinada, dispondo. E o nosso Yustrich é do tipo guerreiro do capitão de Beau Geste”.
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A graça da história é que Yustrich, tendo nome de estrangeiro, jeito de estrangeiro e temperamento de estrangeiro, não passava do interiorano mato-grossense. Dorival Knippel (1917-1990) tomou o nome do goleiro argentino Juan Elias Yustrich pela semelhança física que tinham.
Do alto dos seus quase um 1,90m de altura e de temperamento explosivo Yustrich ficou marcado por polêmicas, troca de sopapos e ameaças de morte, folha corrida que lhe valeu o apelido de “O Homem Mau”.
Tal epíteto pode ser usado agora para mostrar como diversos treinadores brasileiros têm reagido ao sucesso de Jorge Jesus - - que está por trás de cada gol, cada botinada, cada jogada ensaiada do Flamengo. Sua chegada ao Brasil, com a próxima vitória do Brasileiro e a classificação para a final da Libertadores, reacendeu a discussão sobre conceitos, formação, qualidades e defeitos dos treinadores nacionais.
De Renato Gaúcho a Argel Fucks, passando por Mano Menezes e Vanderlei Luxemburgo, os técnicos do país verbalizaram o incômodo com o que chamam de “oba-oba” em torno do treinador português.
Mano Menezes, técnico do Palmeiras, questionou os seguidos elogios a Jorge Jesus. "O jeito que o Flamengo está jogando agrada a todo mundo. Os técnicos não somos contra isso. Mas não podemos achar que o futebol brasileiro começou agora." O presidente da Federação Brasileira de Treinadores de Futebol, Zé Mário, 70, zombou: “Quero ver
Jorge Jesus já disse não entender a antipatia dos treinadores brasileiros".
"Sou um treinador como eles, vim trabalhar. Não vim tirar o trabalho de ninguém, não vim ensinar ninguém. Também queria lembrar para os meus colegas que em Portugal já trabalhou um brasileiro, chama-se (Luiz Felipe) Scolari, um grande treinador . Foi acarinhado por todos os treinadores portugueses. Além dele (Felipão) teve Lazaroni, Abel Braga, Carlos Alberto, René Simões, Paulo Autuori. E nós treinadores portugueses, quando eles tiveram lá, tentávamos aprender e tirar alguma coisa positiva e nunca foi essa agressividade verbal que os treinadores brasileiros têm sobre mim. Não entendo essas mentes fechadas”, exacerbou-se.
A verdade é que Jesus coleciona desafetos entre os treinador já há algum tempo. Em abril de 2014, trocou empurrões com o espanhol Julen Lopetegui, quando um estava no Benfica e outro no Porto. Jesus fizera um trocadilho com o nome do adversário, chamando-o de “Lotopegui”. A TV registrou a reação do espanhol: "Se mudar meu nome novamente, dou um soco em você".
Ex- técnico da Seleção da Espanha e do Real Madri, Lopetegui, hoje no Sevilha, nunca perdoou Jesus. “Não tem categoria. Ele fala muito, fala de todos, porque tem um manto protetor. Quando perdê-lo, vai encarar a realidade”.
De certa maneira, Jorge Jesus representa uma chacoalhada nos métodos e nos principais personagens do futebol brasileiro. Conseguiu resultados muito rapidamente porque trabalhou por eles, não se atendo a limites que os boleiros brasileiros atribuem ao subdesenvolvimento dos gestores do futebol. Afinal, como diria Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos.
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