O mais humano a fazer
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30.03.2020

O melhor exemplo que Kelly Slater pode dar neste momento é assim, vestido, seco e em terra.
Cameron Spencer/Getty
Ontem de madrugada, que já era hoje, saí para passear o cão a horas forretas em pessoas e, cruzando-me com ninguém, fui ao bolso buscar o que hoje compete ferozmente com os nossos amigos de quatro patas pela melhor amizade com o homem, em número de horas de convivência. Abri o Instagram e a primeira coisa à vista era a careca inconfundível de Kelly Slater, que estava à conversa com alguém, em direto.
Calhou, nos dois minutos que acompanhei, o americano dizer que está fechado há semana e meia, na Austrália, sem tirar de casa os pés que costumam tocar em areia, molharem-se de água salgada ou pisarem uma prancha de surf e ele fala em padrões, como o coronavírus nos forçou a alterá-los e a criarmos novidade em outros, entre paredes, a que o tempo já nos padronizou e fez habituar e isso o fez ter o YouTube como "melhor amigo" e ser mais um a contradizer o companheirismo canídeo.
O padrão de vida pelo qual, popularmente, se admira e reconhece Kelly Slater é areia-mar-surf. Com 46 anos e 11 títulos mundiais, diz estar voluntariamente a ignorar essa sequência por respeito ao bem comum, ao contrário de um surfista costa-riquenho que foi corrido do mar a tiro, pelo polícia local, por ignorar ordens de manter o recato caseiro em tempo de pandemia. "Alguém me dê uma explicação racional do porquê de as pessoas não poderem ir surfar se mantiverem a distância", comentou o rei sem coroa na mesma rede social, numa publicação não relacionada com a Costa Rica, mas a tocar no mesmo tema, no qual puxa "pelo ridículo e pela ironia" de em alguns lugares se fechar o oceano e manter os centros comerciais abertos.
Também ontem, o meu não melhor amigo já vibrara com uma mensagem sobre o facto de "ocorrer um problema entre a Covid-19 e o surf "devido às multidões perto do oceano e não ao oceano em si". Salvaguardando que se baseava na experiência pessoa e não se julgava virologista, disse apoiar "as pessoas irem ao mar, especialmente para surfarem E desde que se mantivessem longe dos outros" com base em três argumentos, um falso, o outro por confirmar e o restante aceitável - o mar e as ondas "vão elevar fisica e mentalmente o sistema imunitário das pessoas".
A não anunciada mensagem veio de Mike Stewart, o contrapeso de Kelly Slater no bodyboard e bodysurf, outro careca e lobo do mar (56 anos e nove títulos mundiais) que se fez lendário seguindo o mesmo padrão e que, há pouco mais de uma semana, nos disse ser capaz de aguentar "durante meses" sem ir ao oceano.
Ambas as sumidades das ondas afirmam cumprir o confinamento ainda só recomendado nuns sítios, já obrigatório em outros, mas vestem o fato e a gravata da advocacia do diabo para defenderem o poder libertador do mar, nestes tempos em que o pior padrão que podemos seguir é aquele que mais nos faz sermos humanos e distintos de todas as outras espécies - o contacto social.
Nem Kelly Slater ou Mike Stewart me parecem, de todo, quererem aconselhar à revelia ao que a Organização Mundial de Saúde e quase todos os governos nacionais tentam implementar. Parece-me, sim, que apelam ao bom-senso, apelo que os trama porque essa é uma qualidade humana que não é amiga de todos os humanos. Se duas ou três pessoas decidirem pegar na prancha e rumarem às ondas, tendo presente que há que manter a distância, nada garante que outras 300 ou 400 pensem o mesmo, encham o espaço onde é suposto haver distanciamento e afoguem o bom-senso em conjunto, até ao fundo do mar.
É por isso que a World Surf League e a Federação Portuguesa de Surf cancelaram provas e desaconselham o surf, ou que as federações de futebol, andebol, râguebi, automobilismo, atletismo e demais modalidades estão em suspenso.
Porque o mais humano que podemos ser é isolarmo-nos, cuidando de nós e ao mesmo tempo dos outros, humanizando-nos no bom-senso da reclusão para que dentro de hospitais como o de São João, no Porto, este vírus não chegue ao ponto de médicos optarem pela única humanidade que resta, como descreveu o Ricardo Marques, do Expresso: "Depois há situações limite, em que as pessoas estão a morrer e, com todas as precauções e dentro das possibilidades, a família é autorizada a estar presente no hospital. 'É o mais humano a fazer', lamenta a enfermeira."
O mais humano que podemos fazer, neste momento, é ficar em casa.
O que se passou
Pelo segundo fim de semana seguido, nada aconteceu que retire uma gota de suor a corpos atléticos e profissionais.
Em parte alguma houve humanos sozinhos, ou em equipa, a averiguarem quem ganhava ou perdia - exceptuando na Bielorrússia, onde o campeonato de futebol se continua a jogar alegremente, pontapeado pela alegria mais ingénua que há e talvez merecedora de outro adjetivo começado em "i" e acabado em "a".
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Zona mista
"É impossível comparar-me com o Olivier Giroud. Não se confunde a Fórmula 1 com karting. Eu sou a Fórmula 1. E estou a ser gentil. "
De franco, Karim Benzema teve muito durante a noite de domingo, em que, em outro sinal dos moderníssimos tempos, soltou esta explicação no meio de uma conversa em direto, via Instagram, com Thomas Ngijol, um humorista francês, na qual às tantas até chegou a participar o fenomenal, roliço e retirado dos Ronaldos.
O que aí vem
Acrescentando mais uma pitada de redundância à refeição que tudo quanto é pessoa com responsabilidades institucionais e cívicas tem servido, e como a Lídia Paralta Gomes fez, uma newsletter atrás, esta semana é uma excelente oportunidade para todos cumprirmos o que nos é pedido. Ficar em casa.
Segunda-feira
Em casa, do sofá, há o Partizan de Belgrado - FC Porto (17h30, Canal 11) para ver, de 2003/04, época em que todos sabemos como acabou.
Terça-feira
Não tem horários, dependerá da sua vontade e ginástica de dedos para clicar no ecrã que mais lhe convier e abrir este podcast da World Surf League com Mick Fanning, que já se retirou, mas foi três vezes campeão do mundo e, recentemente, passou muitos meses parado devido a uma lesão no joelho. Desde que o faça em casa, claro.
Quarta-feira
E aquele jogo, em 1984, em que os coitadinhos portugueses com muito bigode per capita aguentaram os brutamontes alemães, no primeiro jogo do Europeu? Vai passar às 19h45 (Sport TV+) e só tem de estar em casa para o recordar.
Quinta-feira
Houve uma altura em que os pontapés eram raros no râguebi, os jogadores corriam com equipamentos pesados e o bonito de correr e jogar muito à mão era estimado, mais do que tudo. O Inglaterra-França dos quartos-de-final do Mundial de 1991 é um exemplo e, que engraçado, pode recordá-lo em casa, porque a World Rugby tem estado a publicar jogos icónicos no seu canal de YouTube.
Sexta-feira
Dois mil e catorze, Bahrain, a Mercedes está a incandescente e a caminho de levar o primeiro de seis títulos mundiais de Fórmula 1, mas pára no Bahrain, onde as turras entre Lewis Hamilton e Nico Rosberg causariam faísca durante toda a corrida em que estiveram os dois na frente. Como a F1 também nos quer a todos em casa, pode recordar a corrida aqui.
Sábado
Já que é fim de semana, porque não trabalhar mais um pouco a relação com a televisão e ver um documentário? Se ainda não o fez, tem o "English Game" para ver (Netflix), que conta as origens do futebol e como a evoluiu do cavalheirismo amador para o profissionalismo operário.
Domingo
Porque segunda, terça, quarta, quinta e sexta são dias retirados do mesmo saco, que lá bem no fundo tem a farinha religiosa que explica como o termo "feira" vem do latim e se colou a todos os dias úteis da semana, argamassa pouco relevante de contar dado o significado latinizado de "feria": significa descanso. E tempo agora é de descansarmos de tudo o que há de imaginável para fazer quando não em trabalho, a não ser que esteja em casa e queira recordar finais olímpicas de várias modalidades que o canal de YouTube dos Jogos Olímpicos está a disponibilizar, por estes dias.
Hoje deu-nos para isto

Stefano Montesi - Corbis
É seguro afirmar que Diego Armando Maradona fazia o que queria por duas razões: porque era, de longe, o melhor do seu tempo a jogar futebol e, logo, porque podia. Atingiu o pico no Nápoles, onde o seu olímpico encolher de ombros para tudo o que existia à volta, durante o aquecimento para um jogo contra o Bayern, em Munique, para as meias-finais da Taça UEFA, se tornou icónico.
E isto ajuda-nos exatamente em quê? Bom, tentar rasgar um pouco o sorriso a quem vê não custa e, se a missão não for bem sucedida, talvez o sejam mais três minutos de distração para ocupar o tempo em casa, onde a vida que vivemos nos obriga agora a abrigar-nos de um vírus que também é portador de marasmo e contagia com aborrecimento se fizermos o suposto para nos protegermos dele.
Maradona viveu e vive a sua vida livre que nem um passarinho sem regras, desalgemado de contenção. Não podemos, de todo, fazê-lo agora, em que tudo está parado e nós, no Expresso e na Tribuna, tentamos informá-lo sobre as coisas que se vão mexendo e que fazemos com que lhe cheguem a casa, onde deve estar e ficar, se as circunstâncias essenciais assim o permitirem.