United 1-1 FC Porto. Fui eu que empurrei o Costinha para o primeiro ressalto. E ninguém me vai dizer o contrário (Lá Em Casa Mando Eu)
Catarina Pereira escreve sobre a mítica eliminatória na Liga dos Campeões onde era para ter estado, em Old Trafford, em 2004. Viu o jogo do sofá e foi de lá que deu o empate aos portistas. A rubrica "O Meu Jogo" convida o cronista, jornalista, ex-jogador, seja o que for, a relembrar-se dos eventos desportivos que mais o marcaram, como adepto ou interveniente
06.04.2020 às 8h56

PAUL BARKER
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Levantar de madrugada, equipar-me a rigor e seguir para o aeroporto. A 9 de março de 2004, não havia um só portista que não estivesse convencido que ia correr tudo bem. Íamos jogar a segunda mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões, contra o poderoso Manchester United, mas na bagagem já levávamos uma das reviravoltas mais míticas do Estádio do Dragão. E era aquela equipa de José Mourinho, que já há algum tempo nos elevava em relação aos comuns mortais.
Fui para o aeroporto com o meu pai, fizemos o check-in juntos, mas tínhamos voos distintos. Ele foi mais cedo sozinho, eu iria um pouco mais tarde com amigos. Passar a segurança, esperar na sala de embarque e colocar-me na fila, sempre ansiosa, não pelo voo, mas pelo jogo. E eis que surge uma das reviravoltas menos engraçadas da minha vida, pois a hospedeira que controlava os cartões de embarque não me deixou entrar no avião.
Porque eu tinha 17 anos (oh, parece que foi ontem…) e precisava de uma autorização para entrar no Reino Unido. Ora, o meu pai – lembro – tinha feito o check-in comigo, mas já ia a caminho de Manchester. Tentei explicar então que ele poderia esperar por mim à chegada e trataria das formalidades com os ingleses nessa altura. Não serviu para ela.
Percebi que não ia longe com uma argumentação racional e disse-lhe então que ia telefonar à minha mãe para ir ao aeroporto. Continuava a ser muito cedo, a minha mãe estava a dormir e teve de correr muito para chegar lá rapidamente. Parecia que ia acontecer algo de lógico, como ela aparecer e tudo se resolver, mas entretanto havia outro menor ao meu lado, cujo irmão maior de idade estava mesmo ali, e a mesma hospedeira também não o deixava entrar.
Outros responsáveis do aeroporto tentavam argumentar por nós, mas não valia a pena. Começávamos todos a entender que não havia ali propriamente uma regra, sabem?
Já com a minha mãe ao lado, pedi-lhe então educadamente para entrar no avião.
“- Agora já não dá. Vamos levantar voo.”
Lá está, não valia a pena. Saí então dali, com a minha mãe, e avisei os amigos que estavam no avião que não ia. Surpresa das surpresas, continuavam na pista e ainda demoraram mais 40 minutos a partir. (Respira, Catarina, respira que isto já foi há muito tempo.)
Chorei o dia todo. Não consegui ir às aulas e fiquei em casa a chorar. Tinha 17 anos e, além de adorar o meu clube, dedicava-me com muito esforço a segui-lo para todo o lado. Tirar-me isso era tirar-me tudo, por muito exagerado que isto agora pareça. Chorei, chorei, chorei.
Até à hora do jogo. A tristeza transformou-se em nervosismo e parecia que aquele sonho ia acabar ali para nós. Queria estar lá, queria chorar com os meus amigos e o meu pai, queria que aquilo doesse, mas em Manchester.
E, depois, aquele livre. Parece que ainda hoje estou a ver-me a levantar do sofá e a ir empurrar o Costinha para chegar primeiro àquele ressalto. Fui eu, eu sei disso. Se eu estivesse em Manchester, às tantas tinha-me distraído. Assim, não. Concentrei-me, acompanhei tudo com os olhos e fui lá ajudá-lo a marcar. E gritei, e corri, e esbracejei e abraçámo-nos, em casa, como se estivéssemos lá. Foi lindo.
E comecei a chorar novamente. As imagens mostravam os adeptos portistas em Old Trafford e eu chorava. Devia estar ali. O meu pai telefonou-me e eu nem o ouvia, mas hoje acho que foi só uma maneira de me dizer que a Liga dos Campeões ia ser nossa.
E foi. E aquela noite foi o momento mais emocionante dessa caminhada. Ainda fui a Lyon, à Corunha e a Gelsenkirchen, mas perdi aquilo. Perdi Manchester, perdi o golo do Costinha, e foi assim que decidi que nunca mais iria àquele estádio. Old Trafford ficaria a ser o meu estádio maldito num dia de tanta sorte.
Uns anos mais tarde, fui a Manchester, já sem precisar de autorização dos pais (!) e para ver um duelo com o City. Visitei a cidade, fiz tudo o que queria e nem sequer passei junto ao Teatro dos Sonhos. Uma pequena homenagem à senhora hospedeira que, se estiver a ler isto, tem de saber o quanto ainda me dói.
P.S. Naquele dia, vários menores foram a Manchester sem familiares mais velhos e não tiveram problema nenhum em Inglaterra.
P.S.2 Ainda com 17 anos, mas na época seguinte, voltei a Inglaterra para o Chelsea-Porto. Os meus pais tiveram o trabalho de ir ao notário fazer uma autorização. Gastaram 25 euros. Nunca ninguém ma pediu.
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