Shandong 5-5 Shangai. Um jogo de loucos na China que marcou a vida de Fernando Valente
Fernando Valente, atual treinador dos sub-21 do Shakhtar Donetsk, recorda os tempos que passou na China, onde viveu um jogo de loucos, com um resultado impressionante, em março de 2018. A rubrica "O Meu Jogo" convida o cronista, jornalista, ex-jogador, seja o que for, a relembrar-se dos eventos desportivos que mais o marcaram, como adepto ou interveniente
10.04.2020 às 15h36

Adeptos do Shandong Luneng, equipa chinesa
VCG
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Todos nós, ao longo da vida, vivemos e partilhamos momentos que nos marcam, em que a força da emoção fica registada na nossa memória. O último jogo que nos permite ser campeão em qualquer divisão é um dos momentos mais emocionantes na carreira de qualquer desportista e eu, graças a Deus, vivi um desses momentos ao serviço do meu União Sport Clube Paredes, na época de 2008/09.
Mas atendendo ao momento que vivemos, fruto desta maldita pandemia de Covid-19, a minha memória leva-me para o país onde tudo começou: a China.
Luís Castro, o treinador principal do meu atual clube, Shakhtar Donetsk, onde treino a equipa sub-21, selecionou-me, para meu orgulho, para fazer parte de uma equipa de treinadores e fisioterapeutas, num projeto de formação de dois anos (2016-2018) a liderar a equipa sub-19 no Shandong Luneng, clube com uma das maiores Academias da China, que "só" tinha 35 campos de futebol...

A Academia do Shandong Luneng, na China
A experiência foi apaixonante e desgastante, porque no prazo de dois anos orientei competições com 10 grupos de jogadores diferentes, o que, para mim, atendendo às ideias "loucas" que tenho, com a mania de gostar que se jogue bem, foi um desgaste e muitas vezes uma frustração, porque o que via em campo nem sempre me agradava...
Mas em toda esta aventura destaco a experiência vivida num torneio realizado na nossa Academia, em março de 2018, que determinava o campeão dessa série para a fase seguinte da competição. As competições na China, na altura, desenvolviam-se dentro de Academias com mais de 10 campos de futebol, em que se juntavam entre 16 ou 20 equipas e no prazo de 8 ou 10 dias disputava-se o torneio, com jogos diários, somente com um dia de descanso, entre cada dois jogos seguidos...
Uma loucura a nível de desgaste físico e, para minha admiração, quando cheguei, os chineses ainda treinavam no dia de descanso. Os miúdos começavam a ter cãibras ao fim do segundo jogo e eles achavam que era por falta de treino... Loucos e burros.
O torneio começou a correr muito bem para a minha equipa. Tínhamos que realizar cinco jogos em sete dias e as quatro vitórias seguidas no início, permitiam que um empate fosse suficiente para sermos campeões no último jogo, contra o Shanghai SIPG, clube onde o nosso Vitor Pereira lidera a equipa sénior.
O jogo começou equilibrado, com um empate de 1-1 ao intervalo, mas o início da segunda parte foi desastroso. A qualidade do adversário, com sete jogadores da seleção da China, levou o resultado para 5-1 a 16 minutos do fim...
As minhas convicções sempre se centraram na transmissão de crenças e ideias que me ajudem a crescer e a transportar os meus jogadores para uma dimensão realista: a de que a maior parte das vezes nós temos os recursos necessários para atingir os nossos objetivos, se nos focarmos no que conseguimos controlar, que são os nossos comportamentos.
Perante este cenário, eu não podia perder "duas vezes", pelo resultado e pela tendência do pontapé para a frente, jogando mal... A mensagem foi clara: nessa altura em que os meus jogadores começavam a olhar para o chão, tendência de quem tem vergonha e a querer esconder-se, eles sabiam que essa era uma das coisas que eu não admitia, porque cada erro era sempre uma nova oportunidade de crescimento, levantar a cabeça, esquecer o resultado e encarar os últimos 16 minutos a acreditar no nosso jogar.
O 5-2 apareceu e transformou-se numa alavanca motivacional que nos fez acreditar que iríamos lutar até ao fim pelo resultado, o que, com o aparecimento do 5-3, se reforçou. O adversário, assustado e recolhido, somente defendia.
Apesar de várias oportunidades falhadas, o 5-4 surgiu... e em cima dos minutos finais, sem bombear bolas para a área, o empate a 5-5 viria a culminar com o final do jogo e a explosão de alegria de um grupo de jogadores que ultrapassaram todos os limites, descritos nos mais sagrados compêndios de futebol atual, onde toda a gente se queixa quando faz três jogos em 10 ou 12 dias.

Esta experiência marcou-me e ainda me arrepia, quando me lembro do que senti quando os meus jogadores me atiravam ao ar, nos meus 57 anos na altura. Levou-me a refletir sobre muitos dos mitos que existem no futebol e que muitas vezes são construídos por quem nunca sentiu a força da emoção e o poder da mente sobre o corpo, porque hoje em dia tudo se mede e quantifica no sentido de dar espaço a negócios ligados ao desporto e mais em particular ao futebol - mas medir ou quantificar o poder das emoções não está ainda ao alcance de ninguém, porque ela varia de jogador para jogador e é fruto de vivências e experiências que vais construindo ao longo da tua vida.
Perguntava a mim mesmo: como é possível, à luz dos princípios físicos da carga/adaptação e da recuperação, a 16 minutos do fim do quinto jogo em sete dias os jogadores esquecerem-se de que estavam cansados e atirarem-se na busca dum objectivo que parecia impossível de alcançar.
Por isso acredito que muitas vezes valemos muito mais do que aquilo em que acreditamos e que estamos longe de imaginar até onde chegam os nossos limites.

Neste contexto de cultura chinesa, eles acham que, como não têm talento, têm que substituí-lo por hard work. Mas não é verdade: o talento existe em todo o lado, é preciso é criar contextos para que ele se desenvolva e promover um nível de confiança nos jogadores para que eles acreditem no seu potencial e que o demonstrem a jogar.
É verdade que temos que respeitar os hábitos culturais de cada país, porque se fossem avaliar a alimentação antes de um jogo dos jogadores chineses, à luz das nossas recomendações, todos eles iriam desmaiar ou vomitar em campo, porque a quantidade de picante, molhos gordurosos e a quantidade de alimentos ingeridos de certeza que era impossível correrem tanto... Mas também é verdade que quando as ideias são fortes e a nossa capacidade de influência é transformadora, os jogadores vão atrás e por isso digo muitas vezes que "ninguém sente falta do que não conhece", mas quando experienciam contextos que eles sentem que os ajudam a evoluir, não importa a cultura nem as crenças, eles vão atrás e transformam o seu Jogar em algo que antes parecia impossível de conseguir.
"O meu jogo" será sempre deixar uma marca nas equipas que treino, pela maneira como elas jogam, mas essencialmente no coração dos meus jogadores, não por aquilo que sou como treinador, mas essencialmente pelo que represento para eles como pessoa, que viveu ao lado deles momentos inesquecíveis.
Este "dia especial" está registado em vídeo na minha página de Facebook. Aqui fica:
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