A propósito de André Ventura: se fosse possível aproveitar a covid-19 para confinar alguma coisa, então deveríamos começar pela estupidez
Rui Santos escreve sobre a polémica entre o deputado André Ventura e o futebolista Ricardo Quaresma, a propósito do "plano de confinamento [específico] para a população cigana”. O comentador da SIC diz que o deputado do Chega marcou dois golos na própria baliza.
07.05.2020 às 14h58

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A polémica entre o deputado André Ventura e Ricardo Quaresma demonstra que a democracia, em Portugal, ainda não produziu todos os seus efeitos, 46 anos depois de ter sido deposto o Estado Novo, existindo reminiscências do fascismo que ainda poluem algumas mentalidades.
A afirmação de André Ventura, segunda a qual e no âmbito da Covid-19 “é preciso um plano de confinamento específico para a comunidade cigana”, representa uma postura doentia perante um preconceito que não faz o mínimo sentido.
O facto de existirem, como alega o deputado do Chega, pessoas ciganas contaminadas pelo coronavirus no Alentejo, é uma justificação insustentável, porque se perde na génese do próprio vírus…
… Que ataca todos, novos e velhos, ricos e pobres, brancos e negros, cristãos e muçulmanos. O coronavirus ataca indistintamente e, por isso, os cuidados a ter com a comunidade cigana são os mesmos que as entidades oficiais devem ter com qualquer grupo populacional, assim como os deveres a que todos devemos estar submetidos, de acordo com a lei.
Desacatos, como aqueles que aconteceram na praia da Leirosa, a sul da Figueira da Foz, alegadamente com origem em comportamentos protagonizados por uma família de etnia cigana, são casos de polícia, como tantos outros que acontecem em todo o País, a Norte e a Sul, muitas vezes colocando em causa a ineficácia das autoridades policiais.
Quando, a título de exemplo, grupos relacionados com claques de futebol agem acima da lei e espalham a violência, seja em postos de abastecimento de combustível, em vias públicas ou mesmo em recintos desportivos, há a mesma tendência para identificar e chancelar, nesses mesmos grupos, distinções de natureza étnica?
O confinamento foi necessário, num determinado momento, para nos defendermos de um inimigo desconhecido. O desconfinamento foi ativado, em razão da eficácia inicial do confinamento, e também porque a economia precisa de estar em movimento, sob pena de se morrer de outras maleitas.
Mas… plano de confinamento específico para a comunidade cigana, como preconiza Ventura, tentando arrastar para esta acção política outras forças partidárias como PSD, CDS e Iniciativa Liberal?
Avançar sozinho para esta proposta, uma vez que que são permitidas estas liberdades regimentais, é a única coisa que o País, espero, pode consentir.
Se fosse possível aproveitar a Covid-19 para confinar alguma coisa, então deveríamos começar, primeiro, pela estupidez e, depois, pelo preconceito.
André Ventura não é o primeiro porta-voz da ciganofobia, uma vez que essa estigmatização histórica conhece muitos séculos de vida, mas transporta com ele, num tempo de modernidade, uma intolerância repugnante e inaceitável.
Ventura marca um autogolo e fica em desvantagem nesta peleja com Ricardo Quaresma: 0-1.
O jogo, todavia, não acaba aqui.
Há um segundo momento do discurso de André Ventura que não é apenas mais uma reminiscência de um passado com quase 50 anos, mas uma brutal contradição: quando o deputado do Chega pede a Ricardo Quaresma e aos jogadores de futebol para não se envolverem em política.
Reconheça-se que Ventura, aqui e ali, nas suas intervenções públicas, mete muitas vezes o dedo na ferida e, se tem assento parlamentar, é porque foi legitimado para assumir as suas posições políticas. A questão não é, pois, de legitimidade. A questão é de princípio(s).
Como é que um homem anda num frenético vaivém entre a Assembleia da República e os estúdios de televisão, para exercer a sua tripla função de deputado, professor e comentador em áreas tão (des)conexas como a política, o crime e o futebol, utilizando a ligação clubística ao Benfica para exercitar o seu alpinismo ideológico, pede aos futebolistas para se calarem e não se meterem em política?
Ainda mais? — pergunto.
Os jogadores de futebol, agarrados a regulamentos internos parturejados pelos departamentos jurídicos dos clubes, são em muitos casos a versão rica e moderna das “Escravas Isauras”.
Um tipo de esclavagismo aceite por todos em pleno século XXI.
Segundo autogolo de André Ventura nesta polémica, com o deputado do Chega a aparecer demasiadas vezes em fora-de-jogo, mesmo considerando que é preciso saber abanar a árvore do sistema.
Resultado final: Ventura, 0-Quaresma, 2. Num jogo que nem deveria ter começado.