Fomos ao Ronaldo dos museus e vamos precisar de pelo menos três meses de fisioterapia
O Hermitage é um dos maiores museus do Mundo e nele está a maior coleção de quadros do planeta Terra. O desafio era simples: conseguir ver o mais possível em apenas um dia, porque ir a São Petersburgo e não ir ao Hermitage é como ir a Roma e, bem, vocês sabem o resto. É que o Hermitage não é grande: é um colosso. As nossas pernas sofrem, mas sobrevivemos à maratona
27.06.2017 às 8h00
Um dia no museu Hermitage
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A internet tem tudo, tudo mesmo, e uma pesquisa por “Quanto tempo é necessário para ver o Museu Hermitage?” traz-nos os mais variados resultados. Há quem diga que um dia safa a coisa, mas também quem se tenha dado ao trabalho de fazer contas, relacionando o número de peças em exposição com o número de minutos necessários em média para os ver e o número de horas que o museu está aberto por dia (o que dá para cima de um mês).
Mas, regra geral, a opinião é que dois ou três dias dão para ter uma perspectiva geral daquele que é um dos maiores museus do Mundo - só o Louvre de Paris tem mais área de exposição - e a maior coleção de quadros do planeta.
Pois entre jogos, treinos e viagens de avião por esta Rússia da Taça das Confederações fora, não temos dois ou três dias. Mas estar em São Petersburgo e não ir ao Hermitage é mais ou menos como ir a Roma e, bem, vocês sabem o resto (nota: já fui a Roma e não vi o Papa). Porque o Hermitage é assim uma espécie de Cristiano Ronaldo dos museus. Aliás, é provavelmente muito mais do que isso: é o melhor onze da história num só edifício.
Uma das incontáveis alas do Hermitage, em São Petersburgo
d.r.
O Hermitage é muito maior, muito mais labiríntico e muito mais colossal que um campo de futebol. É impossível não se perder lá dentro pelo menos um par de vezes e vê-lo num dia apenas é assim como correr a maratona sempre no máximo. Mas, ei, como diria o poeta, se fosse fácil não era para nós. Vamos lá.
A entrada, a primeira desorientação
Hermitage: 66.842 metros quadrados de área e mais de 3 milhões de objetos em exposição entre quadros, desenhos, esculturas, artefactos arqueológicos e uma coleção absurda de numismática.
Tudo começou pelas mãos de Catarina, a Grande, imperatriz da Rússia, que em meados do século 18 desatou a comprar peças de arte a qualquer mercador ou herdeiro caído em desgraça que metesse os pés em São Petersburgo. E se a coleção de Catarina ia crescendo, também o Palácio de Inverno, que servia de residência e sede de governo da monarquia russa, precisava de obras constantes para acomodar tantas peças, até porque os seus sucessores continuaram a engordar os corredores do edifício.
Apesar de a fundação datar de 1754, a verdade é que foi apenas em 1852, com Nicolau I que o museu abriu ao público. Daí para cá, o Hermitage foi aumentando mais e mais, sobreviveu à Primeira Guerra Mundial (período em que parte das salas se transformaram em hospital), a incêndios devastadores e com a queda dos czars tornou-se num edifício do Estado. Já durante a II Grande Guerra, e antes do início do Cerco a Leningrado, que durou 872 dias e matou mais de 1,5 milhões de pessoas, boa parte da infindável coleção do Hermitage foi enviada em dois comboios para Ecaterimburgo, longe das mãos dos soldados de Hitler. O Hermitage sofreu bombardeamentos, mas ficou de pé, reabrindo em finais de 1945.
Paul Cezanne, na sua melhor imitação de José Sá
d.r.
O Hermitage não é, portanto, apenas uma viagem pela história da arte: é também uma viagem pela história da Rússia em que cabem Alexandre, o Grande, os czars, ministros, generais que impediram Napoleão de conquistar estes territórios, enfim, gente de fibra que teria dado um certo jeito à seleção russa por estes dias, face à desilusão que foi a participação na Taça das Confederações que organizam.
Mas para ver tudo isso, há o primeiro teste. E é logo um dos complicados: o de entrar, simplesmente entrar. O museu abre às 10h30, às 11h estou à porta, mas até entrar verdadeiramente no museu perco uns bons 45 minutos. Há que subir e descer uma série de escadas e serpentear entre grupos de chineses e tours de alemães, húngaros, enfim, escolham uma nacionalidade. A loja já está cheia. Pergunto-me como é que se faz compras num museu ANTES de realmente ver o museu.
Ali perto está o primeiro ponto de “uau”, chamemos-lhe assim. Uma série de artefactos do antigo Egito, alguns deles do ano 13 AC. Há uma série de sarcófagos que se abrem e dentro têm sarcófagos mais pequeninos. Percebo onde é que os russos foram buscar as ideia das matrioskas. Lembro-me também de Sabry, rapaz que um dia, talvez também inspirado nestes sarcófagos, demorou oito minutos a preparar as botas e as caneleiras antes de entrar em jogo, dando azo a um dos primeiros momentos-Mourinho que tenho memória.
Adiante. Chego finalmente à escadaria que dá acesso ao andar onde estão os principescos aposentos dos Romanov, alguns deles com paredes revestidas a ouro porque, amigos, quem não quer dormir num quarto revestido a ouro. Os enormes salões onde a família real fazia as suas festas e recebia os seus convidados são tão colossais que, mesmo estando ali dentro cinco ou seis estádios Azteca, uma pessoa anda à vontade.
Olho para o relógio: de repente passaram duas horas.
A circulação (e respiração) começa a complicar quando começam a surgir as salas com as obras dos mestres. Leonardo da Vinci, Rafael, Tiziano, Miguel Ângelo. Uma equipa para a Europa. E é só aqui, nesta ala do Palácio de Inverno. As pessoas amontoam-se, há cotoveladas, correrias, encontrões. Tudo não para ver a Madonna Litta de Da Vinci mas sim para tirar uma fotografia da Madonna Litta de Da Vinci. Tento ver, sou atropelada por 30 chineses de telemóvel na mão e desisto.
Continuo o meu caminho, já com duas ou três nódoas negras (um conselho: caso cá venham, tragam caneleiras, joelheiras, cotoveleiras, bebidas isotónicas, enfim, o que tiverem à mão). Caminho entre mais não quantas salas cheias de arte da idade média, passo depois para a pintura dos séculos XV, XVI e XVII. Dos flamengos aos britânicos, dos franceses aos italianos. Olho para a planta do museu e, não sei bem como, só vou a pouco mais de meio do primeiro andar. Pergunto-me se não devia ter trazido mantimentos, uns enlatados para o caso de ficar encurralada ali dentro. Passo por salas inteiras de Rembrandts e Rubens, mas o que me chama à atenção é um quadro de Paulus Potter (sem relação familiar com o feiticeiro) chamado “A punição do caçador”. Nele um grupo de animais condena à morte em tribunal um caçador e os seus cães. Muito orwelliano.
A prova de que a relação Miguel Ângelo/centenas de telemóvel na mão é uma realidade
d.r.
Volto a olhar para o relógio. Tenho fome, mal sinto as pernas. Opto por ver os restantes pisos, atestados com antiguidades do império grego e romano, quase em passo de corrida. Do outro lado da praça está o General Staff Building, quase do mesmo tamanho e onde o Hermitage guarda a sua coleção de arte contemporânea. Mas perco-me novamente, volto a salas por onde já tinha andado e perco mais uns bons 15 minutos até encontrar o caminho certo.
À saída, ainda esboço uma tentativa de perguntar se posso ir às catacumbas, onde o Hermitage alberga outra importante coleção: um grupo de 60 gatos que tem um departamento próprio (true story), um assessor de imprensa próprio (no joke) e três tratadores a tempo inteiro.
A história remonta ao século XVIII, quando a imperatriz Isabel quis livrar-se de uma infestação de ratos que colocava em perigo as obras do museu. Os lindos gatinhos trataram do assunto de forma tão eficaz que até hoje continuam a fazer parte da história do museu. Aliás, se o Mundial de 2010 teve o Polvo Paul, esta Taça das Confederações tem o Gato Aquiles, um dos residentes das caves do Hermitage e que também tem jeito para adivinhar resultados.
O melhor onze de pintores
São três da tarde e o museu fecha daqui a três horas. E ainda me falta metade. Atravesso a Praça do Palácio para o General Staff Building. Não sei onde é a porta e os policias a quem pergunto, muito menos.
Agarro qualquer coisa para comer numa banca de rua, encontro a porta enquanto dou uma trinca num bolo com queijo doce (sabe melhor do que soa), volto a passar pela segurança (em qualquer edifício público ou estação de metro é necessário passar por detetores de metais) e “atiro-me” aos contemporâneos.
Antes, páro 10 minutos e bebo meio litro de água, só mesmo para não desfalecer.
Começo pela coleção de Matisse, que é enorme e atravessa várias salas. O francês teve uma amante russa e alguns dos quadros que aqui estão foram doados por ela. Continuo, aparece-me Kandinsky, Rivera, Picasso, Van Gogh, Gauguin, Cezanne, Renoir, Degas, Manet e Monet. Só aqui estão onze, um onze de luxo. É como se de repente alguém me dissesse: “Olha, naquele campo estão o Yashin, o Beckenbauer, o Maldini, o Roberto Carlos, o Di Stefano, o Cruyff, o Zidane, o Maradona, o Messi, o Ronaldo e o Pelé”. Assim todos, ao mesmo tempo.
É assim sem sentir as pernas mas de coração cheio que me dirijo para a saída. Antes, sento-me numa das confortáveis cadeiras do auditório desta parte nova do Hermitage e por lá fico, sem me conseguir levantar. Foram quase sete horas a percorrer o Hermitage e mesmo assim ficou muito por ver. Penso: "Vou precisar de uns três meses de fisioterapia", mas que não há problema nenhum nisso: afinal, vi os melhores de sempre a jogar todos de uma só vez.