Há quem lhe chame o Mundial da vergonha e os jogadores começaram a fazer algo em relação ao Qatar
A qualificação para o próximo Campeonato do Mundo, em 2022, arrancou esta semana e os jogadores da Noruega e da Alemanha exibiram t-shirts com mensagens de alerta para os trabalhadores migrantes no Qatar, que a Amnistia Internacional diz serem 95% da força laboral no país - e alvo de constantes ameaças aos seus direitos humanos. Os futebolistas já escolhem não se preocupar apenas em jogar futebol
26.03.2021 às 17h51

TOBIAS SCHWARZ / POOL
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Os anos passam, os quadriénios cumprem-se e costuma chegar o dia confortável no sofá, em que o adepto ou interessado pela vida com bola nos pés do seu país entra no Campeonato do Mundo atina a televisão para ver como a seleção se vai safar no evento-rei da selva futebolística. No caso de Portugal, começou esta semana a trabalhar para estar no seu sexto Mundial seguido.
Por um parágrafo, consideremos o futebol como um produto e o adepto logo fica como o seu recetor final, uma cadeia onde no meio há tudo e mais alguma coisa e o elo comum entre direitos televisivos, publicidade, marketing, estádios e infraestruturas seja o dinheiro.
A FIFA escolheu o Qatar para receber a próxima edição do Mundial, muito antes de entender que porventura não fosse a melhor ideia realizar a prova como habitualmente, durante o verão do hemisfério norte, porque os termómetros derretem por essa altura no país do Médio Oriente e com eles sofreriam os jogadores que correm atrás da bola. Mexeu-no no costumeiro e deslocou-se o Mundial para entre novembro e dezembro, sempre com um ruído de fundo presente.
Em causa está a terra onde, pelos cálculos feitos pelo "The Guardian" morreram cerca de 6.500 trabalhadores migrantes desde 2010, quando se soube que lá seria o palco do próximo Campeonato do Mundo, um dos eventos desportivos mais rentáveis do planeta (o "New York Times" estimou que a edição de 2018 renderia €6.1 mil milhões em lucros para a FIFA).
E o barulho parece agora estar a querer inundar as salas onde, hoje em dia, são o único espaço possível para a mensagem chegar ao produto final.
Na quinta-feira, alinhados antes do jogo contra a Islândia, os 11 titulares da Alemanha despiram os casacos e mostraram uma t-shirt preta com letras garrafais brancas usada: "Human Rights", lia-se. "Direitos Humanos", as duas palavras para as quais a cara fechada, comum a todos, queria centrar a atenção das câmaras e de quem via a transmissão televisiva. "Defendemos os direitos humanos, independentemente da localização. Estes são os nossos valores", defendeu Joachim Löw, treinador da Alemanha, conquistadora de quatro Mundiais (1954, 1974, 1990 e 2014).

Os jogadores noruegueses, alinhados antes do jogo contra Gibraltar. Não há uma foto de frente disponível na base de dados da Getty Images
JORGE GUERRERO/Getty
Na quarta-feira, os jogadores da Noruega já tinham feito algo semelhante.
Uns e outros aproveitaram a ocasião e o simbolismo, executando o ato nos respetivos jogos inaugurais da fase de qualificação para o Mundial de 2022. A Federação Norueguesa de Futebol foi a primeira a anunciar essa intenção. "Trata-se de pressionar a FIFA a ser ainda mais direta e firme com as autoridades do Qatar, para imporem medidas mais rígidas", dissera o selecionador Ståle Solbakken, antes do jogo em Gibraltar, onde os jogadores vestiram t-shirts brancas com a mensagem: "Respeito dentro e fora de campo".
O capitão norueguês, Martin Odegaard, também dera conta de que "muitos jogadores" estavam "determinados em fazer alguma coisa", isto já depois de o Molde, clube que compete na I Liga do país, apelara publicamente à federação para boicotar a participação no Mundial, caso lograsse qualificar-se. Outras equipas fariam o mesmo e já foi noticiado que, em junho, a entidade discutirá o tema em assembleia-geral.
Os jogadores sobre quem tanto se ouve - às vezes, até dos próprios - que devem permanecer apolíticos, contidos nas mensagens e neutros nas posições em favor de se preocuparem apenas com jogar futebol, agiram em prol do que consideraram correto. E a FIFA considerou correto informar que "nenhuma ação disciplinar será tomada em relação a este assunto", declarando-se crente "na liberdade de expresso e no poder do futebol como força do bem".
Em dois dias seguidos viram-se estas mensagens sobre o que a Amnistia Internacional tem catalogado, nos últimos anos, como "o Mundial da vergonha": calcula que exista 1.7 milhões de trabalhadores migrantes no Qatar, o que representará perto de 95% da força laboral do país. A maioria serão oriundos do Nepal, Bangladesh e Índia.

Um trabalhador no estádio Al-Bayt, em Doha, no Qatar
GIUSEPPE CACACE/Getty
A Amnistia Internacional revelou, por exemplo, que vários trabalhadores migrantes que participaram na construção do estádio Al-Bayt, em Doha, não receberam qualquer ordenado durante sete meses.
A organização dedicada aos direitos humanos tem detalhado a exploração destes trabalhadores, revelando "mentiras" e promessas não cumpridas em relação a salários, além do atraso no seu pagamento; expondo condições de alojamento "inseguras e sobrelotadas"; relatando situações em que os passaportes são confiscados e denunciando "ameaças e intimidações" cometidos pelos empregadores.
Esta quinta-feira, um porta-voz da organização do Mundial no Qatar, citado pela agência "Reuters", garantiu que sempre houve "transparência sobre a saúde e segurança dos trabalhadores", dizendo que houve "três mortes relacionados com trabalho desde que as [obras de] construção começaram em 2014".
No dia em que a bola ganhou vida na qualificação para o primeiro Campeonato do Mundo que acontecerá no Médio Oriente, a Amnistia Internacional apelou, em comunicado, à FIFA para "viver de acordo com as suas responsabilidades" e "prevenir, mitigar e remediar os riscos para os direitos humanos" relacionados com a prova.
Os jogadores da Noruega e Alemanha escolheram agir e mostrar, publicamente, que não se estão a limitar a jogar futebol. Em novembro de 2020, a Amnistia Internacional escreveu a 27 federações nacionais de futebol com um apelo - "assumam um papel ativo para garantirem os direitos humanos dos trabalhadores migrantes". E consciencializem os adeptos de que também está em causa no Mundial de 2022.